Roberta Fragoso Kaufmann critica adoção de cotas para negros e índios em concursos públicos
O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, assinou na última segunda-feira, dia 6 de junho, o decreto (nº 43.007) estabelecendo a reserva de 20% das vagas dos concursos públicos estaduais para negros e índios. O novo sistema de cotas passa a valer 30 dias após sua publicação no “Diário Oficial”, ocorrida na terça-feira. O decreto vai vigorar por pelo menos dez anos.
A constitucionalidade do sistema de cotas, em vigor na Universidade de Brasília (UnB), será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal no próximo semestre, quando julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186. O relator da Ação é o Ministro Ricardo Lewandowski, que já liberou o voto para inserção em pauta. Apesar da ação ser especificamente contra as cotas raciais da UnB, os seus efeitos serão estendidos para todas as Universidades que adotarem as cotas raciais no Brasil.
Procuramos a mestre em Direito Constitucional, procuradora do Distrito federal e autora do livro “Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito?”, Roberta Fragoso Kaufmann, para falar sobre o tema. O objetivo é promover o debate sobre uma questão que interessa a todo o país, por determinar a concessão de direitos com base na cor da pele.
A especialista do Instituto Millenium afirma que ser contra as cotas raciais não significa desconhecer ou negar a existência de racismo no Brasil. “Entretanto, o racismo deve ser combatido na esfera penal, com punição exemplar para os indivíduos que assim se manifestarem”.
INSTITUTO MILLENIUM – Em um recente decreto, assinado pelo governador Sérgio Cabral, 20% das vagas dos concursos públicos realizados no estado do Rio de Janeiro ficarão destinadas a negros e índios. Qual é a sua opinião sobre essa medida?
Roberta Fragoso Kaufmann - Acredito que a implantação de cotas raciais no Brasil é de uma inconstitucionalidade flagrante, pois ofende o princípio da proporcionalidade. Trata-se da importação de um modelo que foi pensado para resolver um problema que não é nosso – a questão da segregação institucionalizada. O sistema de cotas raciais foi idealizado e efetivado pioneiramente pelos Estados Unidos, país que teve um histórico secular de racismo oficializado, ou seja, praticado pelo Estado, em todos os níveis de governo e por meio de todos os três poderes. No Brasil, nós não precisamos implantar as cotas raciais para atingir a finalidade a que se pretende – o aumento da participação de negros em cargos de prestígio e nas camadas sociais mais elevadas. Basta implantarmos as cotas sociais para ingresso nas universidades que naturalmente vamos integrar o negro que mais precisa de apoio estatal – já que 70% dos pobres no Brasil são negros –, sem corrermos o risco da racialização do País.
É preciso esclarecer, no entanto, que o fato de sermos contra cotas raciais não quer dizer que qualquer ação afirmativa para outras minorias seja inconstitucional. O problema é a definição do que venha a ser minoria apta à proteção estatal por meio de cotas. Reconhecer a existência de preconceito e de discriminação em relação a determinado grupo é insuficiente para legitimar uma política estatal de integração forçada daquela minoria, senão deveríamos ser forçados a reconhecer a necessidade, em nosso sistema constitucional, de cotas para homossexuais, nordestinos, feios, Testemunhas de Jeová e obesos, dentre outras minorias que são alvo de preconceito e discriminação. O critério precisa ser objetivo e, sobretudo, revelar uma incapacidade efetiva do grupo beneficiado, como acontece com os deficientes físicos, os idosos e as gestantes.
Por outro lado, importa mencionar que ser contra cotas raciais também não quer dizer desconhecer ou negar a existência de racismo no Brasil. Entretanto, o racismo deve ser combatido na esfera penal, com punição exemplar para os indivíduos que assim se manifestarem. É preciso a todo custo acabarmos com a chaga da discriminação, do preconceito e do racismo em relação a negros no Brasil. Mas isso não se dá por meio de cotas, que só agravam o conflito e as tensões existentes.
IMIL – Quais as conseqüências negativas que a adoção desse sistema pode trazer para a sociedade brasileira?
Kaufmann - Inicialmente pode-se destacar o risco de fomentar na sociedade a crença de que raças existem. No momento em que já houve a total decodificação do genoma humano e na medida em que há consenso entre os geneticistas de que todos nós somos igualmente diferentes, qualquer tentativa de dividir a raça humana com base na cor da pele não faz qualquer sentido. Toda a discussão em torno da raça gira em torno de 0,035% do genoma humano. Se não faz sentido dividirmos os direitos das pessoas com base no tamanho da orelha, geneticamente, não se legitima a diferenciação com base na cor da pele. É preciso esclarecer que não existe racismo bom, nem racismo politicamente correto. Todo racismo é condenável e deve ser evitado.
Em todos os países em que as cotas raciais foram implantadas, em pouco tempo houve a insurgência de graves conflitos civis, como nos EUA, em Ruanda e na África do Sul. Ademais, grande parte das pessoas que integram o movimento a favor das cotas raciais objetiva a formação de uma identidade negra paralela à identidade brasileira, com valores e cultura próprios, como se fosse um defeito termos orgulho da miscigenação e do fato de nos identificarmos com uma única idéia de nação, de cultura e de povo.
Destaque-se ainda para a inconstitucionalidade da implantação dos Tribunais Raciais, como o exemplo da Universidade de Brasília. De composição secreta e com base em critérios secretos, a referida corte racial ignora que a miscigenação efetivada desde o início da colonização no Brasil trouxe como conseqüência a ausência de correlação entre cor do indivíduo e ancestralidade genômica. Não é à toa que recentemente foram realizados exames de marcadores genéticos em diversos negros no Brasil e o resultado foi que em vários casos, pessoas aparentemente negras possuem ancestralidade européia maior do que a africana. Neguinho da Beija-Flor, por exemplo, possui 70% de ancestralidade européia. Como definir quem de fato pode ser destinatário da medida?
IMIL – A constitucionalidade do sistema de cotas será votada pelo Supremo Tribunal Federal em breve. Quais são as expectativas?
Kaufmann - A expectativa é a de que o Supremo Tribunal Federal observe os riscos da implantação das cotas raciais em um país miscigenado como o Brasil. Não precisamos assumir o ônus de um Estado racializado para atingirmos o desiderato de integrar os negros. Cotas sociais, sim! Porque a pobreza, no Brasil, atua como o grande filtro para o efetivo exercício dos direitos fundamentais.
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